Shows, Circuitos Universitários e Trilhas de Novelas

Toquinho e Vinicius iam renovando o fôlego da criatividade, incursionando pelos mais diferentes caminhos da expressão musical, precursores que foram dos Circuitos Universitários e das trilhas sonoras das novelas de TV. Ainda em 1971, tinham se apresentado durante um mês no Teatro Maria Della Costa, ao lado de Marília Medalha e o Trio Mocotó, no espetáculo “Encontro”.

Em dezembro, com esse show, inauguraram o Teatro Paiol, em Curitiba, a convite do então prefeito eleito pela primeira vez, Jayme Lerner, que iniciava seu plano transformador naquela cidade. Esse show marcava a seqüência de uma jornada de apresentações a estudantes de quase todo o país que se estendeu por 1972. Era o primeiro Circuito Universitário que faziam, passando por capitais e cidades do interior dos estados, impressionando-se com o nível cultural e o interesse da juventude pela música brasileira. Para Toquinho, tudo se dava como mais uma escola da existência humana. Exercer o prazer de tocar e cantar, tanto em teatros modernos e bem montados, quanto em palcos improvisa-dos, com luz insipiente e som precário.

Em 1972

criaram a trilha sonora da novela “Nossa Filha Gabriela”, da TV Tupi, Canal 4., que ficou registrada num LP lançado pela Polydor: “Vinicius Canta ‘Nossa Filha Gabriela’ – Música de Vinicius de Moraes e Toquinho”. Até aí, nenhuma novela havia recebido esse tratamento musical especial, como se faz nos filmes. Parece que os produtores despertaram para isso e, em 1973, Toquinho e Vinicius foram requisitados pela Rede Globo para musicarem aquela que se constituiria numa das novelas melhor estruturadas da TV brasileira: “O Bem-Amado”. Quem pode se esquecer do grande Paulo Gracindo incorporando o prefeito de “Sucupira”, “Odorico Paraguaçu”, e suas artimanhas inescrupulosas e corruptoras? Corroborado pelo disfarçado caudilhismo de “Zeca Diabo”, na pessoa de Lima Duarte, e pela ingênua submissão de “Dirceu Borboleta”, criado brilhantemente por Emiliano Queiroz.

Vin-Marilia-ToqDifícil apagar da lembrança as sucessivas tramas de opressão, amor, ódio e humor que enriqueciam o cotidiano de “Sucupira” e seu cemitério sempre à espera do primeiro cadáver, que, por ironia, acabou sendo o do próprio prefeito “Odorico”, na fantástica história de Dias Gomes. Incrível como toda essa fictícia teia envolvente de realismo pôde ser encaixada com tanta justeza por Toquinho e Vinicius na música que abria a novela.

Todas as noites, em torno de 22:00 horas, não ha-via um lar desse país em que pelo menos uma pessoa não se ajeitasse em alguma poltrona diante daquele chamamento musical. Completavam o LP “O Bem-Amado”, produzido em 1973 pela Som Livre, as músicas “Paiol de pólvora”, “Cotidiano n° 2”, “Meu pai Oxalá”, “No colo da serra”, cantadas por Toquinho e Vinicius; “Um pouco mais de consideração”, só por Toquinho; “Patota de Ipanema” e “Se o amor quiser voltar”, na voz de Maria Creuza; “Veja você”, com Toquinho e Maria Creuza; e “Quem és?”, com Nora Ney.

Essas músicas traspassaram os aparelhos de TV e o LP alcançou os primeiros lugares nas listas de popularidade e vendagem. Em 1974, criaram outra trilha sonora para a novela “Fogo Sobre Terra”, da TV Globo, também registrada em disco pela Som Livre. No palco, Toquinho e Vinicius acostumaram-se ao apoio da voz e da figura feminina. Assim foi que, ao empreenderem o Circuito Universitário de 1973 com o espetáculo “O Poeta, a Moça e o Violão”, escolheram Clara Nunes, a inesquecível mineira de Paraupeba, então de cabelos ruivos, vestindo um longo e rodado rendado branco, ostentando em cena o candomblé que a denominava “Deusa das Cachoeiras”.

Para ela, Vinicius era “um gênio”, e Toquinho, “sensacional”. Os três garantiram o sucesso do show, que estreara no Te-atro Castro Alves, em Salvador, e estendera-se por Recife, Curitiba, Porto Ale-gre. Permanecera dez dias no TUCA, em São Paulo, e seguira seu trajeto pe-los palcos do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e sabe-se lá por quantas cidades mais, invadindo o ano de 74. Em seu contexto, a presença da moça era perti-nente. Porém, a poesia do poeta e o violão do violeiro acabavam arrebatando as plateias. Principalmente nos momentos em que Toquinho virava o íntegro instrumentista nos solos que fazia, e, na visão oposta, quando Vinicius se libe-rava em “poetinha vagabundo”, surgindo no palco de macacão cor de laranja, sambando no pé a música que Toquinho e Chico fizeram em sua homenagem, e que é o retrato do despojamento dele: “Poeta, poetinha vagabundo/ Poeta da pesada, do pagode e do perdão…”. É gostoso saber dos atalhos que levaram à confecção desse “Samba pra Vinicius”.

Toquinho fala sobre isso. “Se eu tivesse que desenhar um bicho que representasse Vinicius, desenharia um gato de telhado. Desses que fazem barulho à noite, trepando com as gatas, e não deixam as pessoas dormir. Um gato simpático, que passa de um telhado para outro e que sabe sobreviver sozinho. Vinicius nunca seria um gato de madame. Então, comecei a fazer uma música que traduzisse toda essa brejeirice dele, encaixando as notas que eu sabia que ele gostava. Fiz a música, e é claro que ele gostou. Muito vaidoso que era, me falava para dar a música para vários autores brasileiros, e que cada um fizesse uma letra dizendo o que eles achavam dele. A ideia ficou no ar. Mas, quem poderia fazer uma letra para esse samba, que é brejeiro, e que tenha a cara de um gato de telhado?. Aí, claro, chamei o Chico. E um dia, sem o Vinicius saber ainda, o Chico apa-receu com a letra pronta. Ele desenvolveu toda a primeira parte com a predominância do P de poeta, e a segunda com o V de Vinicius. E ficou perfeito. Ele sintetizou o Vinicius numa letra fantástica, com um poder de síntese incrível, síntese brejeira, falada de uma forma tão carinhosa: ′Poeta, meu poeta cama-rada/ Poeta da pesada, do pagode e do perdão′…. ′Poeta, poetinha vagabundo/ Virado vira-mundo vira e mexe paga e vê…′. O Vinicius era tudo isso que a letra diz”, continua Toquinho. “Um poeta que não escondia mais seu desprendimento pela vida. Isso irritava os que o chamavam pejorativamente de “elefantinho da Shell”, por causa daquele macacão laranja. Ele se lixava para isso, mesmo porque aquela atitude dele refletia até uma certa agressividade como resposta para todos que não se conformavam com um poeta sambando num palco daquele jeito. A ver-dade é que fazíamos um grande sucesso nos discos e no palco, o que desa-gradava muita gente. Como dizia Jobim, fazer sucesso é pecado. E o sucesso era uma conseqüência direta de uma parceria acontecida na hora certa, im-pulsionada por uma incomum criatividade”.

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