Outros shows, outros discos

Shows, discos, viagens foram sempre as características marcantes da dupla. Em julho de 1974 surgiu o primeiro álbum lançado pela Philips com músi-cas de “Toquinho & Vinicius”. A produção continuava acelerada: “Como é duro trabalhar”, “Samba da volta”, “A carta que não foi mandada”, “Triste sertão”, “Carta ao Tom 74”, “Canto e contraponto”, “Samba pra Vinicius”, “Sem medo”, “Samba do jato”, “As cores de abril” e “Tudo na mais santa paz”.

Vira e mexe, iam seguindo a letra da canção: “A vida é pra valer, a vida é pra levar…”. Outra vez pé no asfalto. A troupe, que se dividia em três carros nas estradas, juntava-se nos palcos: Azeitona no contrabaixo, Mutinho na bateria; quatro vozes uníssonas: Cyva, Cynara, Dorinha e Soninha – “Quarteto em Cy”; o carisma, a mesinha, o uisquinho: Vinicius; a descontração, o sorriso, o violão: Toquinho. Esse show, “Concerto”, era uma retrospectiva dos trabalhos do Quarteto, do violonista e do Poeta. Mas o ano de 1973 havia sido cruel com a humanidade: levara embora três grandes Pablos – Neruda, Casals e Picasso. Um deles, Neruda, amigo íntimo de Vinicius.

toquinho1Os outros dois, verdadeiros mitos a quem Vinicius admirava pelo talento artístico e força vital. Num dos momentos do show, ele lamentava essa perda: “Que ano mais sem critério Esse de setenta e três Levou para o cemitério Três Pablos de uma só vez” “Três Pablões, não três Pablinhos No tempo como no espaço Pablos de muitos caminhos: Neruda, Casals, Picasso…”. Era um poema de seis estrofes, sendo que a última reservava um forte desabafo de Vinicius: “Três líderes cuja morte O mundo inteiro sentiu Oh, ano triste e sem sorte Vá pra puta que o pariu”.

O palavrão passara incólume por todas as plateias, até chegar em Brasília. Aí atingiu fundo o puritanismo das mulheres de alguns militares e a censura acabou suspendendo Vinicius por 30 dias diante da “inconveniência de seu comportamento em cena nos espetáculos realizados em Brasília e Belém, quando proferiu palavras de baixo calão”. Mesmo sem Vinicius, o show tinha de prosseguir. Toquinho assumia o comando do palco ao lado do Quarteto em Cy, e mantendo a mesma estrutura do espetáculo completaram a fase sul da temporada no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre, e no Teatro Paiol, em Curi-tiba, assegurando, ainda que com a ausência de Vinicius, a freqüência maciça do público. Cynara, uma das intérpretes do Quarteto em Cy, ressalta a deter-minação e o senso profissional de Toquinho: “Nada esquentava muito Toqui-nho. Sempre pronto a reverter as situações adversas. Quando decidimos con-tinuar o show sem Vinicius, ele dizia: ′Vamos para frente, vamos seguir que vai dar tudo certo!′.

Um cara muito positivo, que pega o lado bom da vida para vi-ver. Isso é que faz o Toquinho evoluir com garra e com vontade de superar as dificuldades. Acho que ele foi fundamental na carreira de Vinicius dando vida nova ao Poeta em relação à música e à poesia do mesmo. Nos momentos mais “pra baixo”, ele nunca aparentou desânimo ou aborrecimento. Em viagens longas, sempre surgem algumas rusgas, mas com Toquinho, não. Jamais teve nenhum “grilo” com a companhia da gente. Isso se refletia no palco, durante os shows, quando ele mantinha uma parceria carinhosa conosco, através de olhares de compreensão e cumplicidade”. O bom humor de Toquinho parece ser uma unanimidade entre as pesso-as. Cyva, outra componente do Quarteto, confirma isso: “Trabalhar com Toqui-nho é ótimo. Nunca vi o Toco de baixo astral. Muito namorador, também. Na moita, namorava todas! Aconteciam apaixonites em lugares meio secretos, sempre com a cumplicidade de Vinicius”.

Os anos de 1975 e 76 foram curtos demais para comportar a agenda de Toquinho/Vinicius, tanto nos palcos como em discos.

Aderiam então, definitivamente, às plateias universitárias e prosseguiam desbravando estradas, integrando-se aos estudantes. No circuito de 1975 haviam dispensado o apoio da presença e da voz feminina. Toquinho explica como adquiriram a confiança de cantar sozinhos. “Vinicius adorava o palco. Digeria o show mastigando as pa-lavras, as idéias, fazendo charme o tempo inteiro. Mesmo estourado de cansa-ço, curtia aquele momento. Já com uma certa experiência de shows, ele pas-sou a assimilar mais o palco quando começamos a trabalhar juntos. E eu aprendi tudo isso com ele. Eu era inseguro, não cantava em público, e me tornei um cantor. Vinicius também não era um cantor, e nós nos passamos essa capaci-dade através de um lance que ia desde a amizade e da confiança um no outro até o grande prazer de fazer o que fazíamos. Incorporamos o canto depois de alguns anos de parceria. No início, sentíamos a necessidade da presença de uma cantora, pois Vinicius fazia questão de revelar ou confirmar talentos. Foi o que aconteceu com Maria Creuza, Marília Medalha, Maria Bethânia, Clara Nu-nes, Quarteto em Cy, que nos acompanharam até o momento em que nos sen-timos aptos a cantar sozinhos”. Nessas andanças intermináveis, iam desbravando churrascarias e rodí-zios de estradas: Toquinho, Vinicius, Azeitona contrabaixo e Mutinho na bate-ria. E Vinicius não perdia a oportunidade para a comparação: “Somos os 4 mosqueteiros das churrascarias. Comendo cupins e bebendo cerveja nos rodí-zios, agüentando as moscas e o calor.

Depois de tanto cupim, ainda continuamos a viajar, como verdadeiros mosqueteiros”. Para celebrar essa realidade, surgiu a idéia de fazer uma música que eles passaram a cantar nos mais dife-rentes locais, cuja letra é essa: “Nós vamos pelas rotas do Brasil Nós somos os quatro mosqueteiros musicais Cantamos com empenho varonil Pras velhinhas, coroas e mocinhas virginais. Nós somos Athos, Porthos, Aramis e Dartagnan Levamos uma vida bem feliz e folgazã Os quatro mosqueteiros musicais: Mutinho, Azeitona, Toquinho e Vinicius de Moraes”. Em meio a viagens e shows por todo país, foi lançado o LP Philips “Vini-cius/Toquinho”, um álbum duplo dos mais sofisticados e artísticos, sob direção de Fernando Faro. Nada de vanguardismos musicais, apenas o inspirado re-quinte do trivial. Um requinte que começa pelas capas e mais duas ilustrações internas, a marcar a estréia dos trabalhos de Elifas Andreato com Toquinho e Vinicius. Esse disco contém algumas “jóias” do repertório de Toquinho e Vinicius.

Uma delas é a música “O filho que eu quero ter”, das mais comoventes canções criadas pelos dois. Aquele que, ao ouvir essa melodia, se mantiver concentrado em sua letra, certamente terá de se esforçar para conter alguma lágrima. Um dos depoimentos mais determinantes sobre essa canção foi de Elias Andreato: “Quando ouvi ‘O filho que eu quero ter’ revoguei minha deci-são de jamais ter filhos. Meus filhos nasceram inspirados na música de Toqui-nho e Vinicius e deram sentido a todos os meus desenhos”. No entender de Toquinho, essa música contém uma magia que emociona, mas requer uma atenção especial: “Tem até um momento certo no teatro para ser cantada. Pos-sui uma melodia quase infantil, uma espécie de moldura para a idéia da letra”. A outra é “Choro chorado para Paulinho Nogueira”, homenagem ao grande e saudoso mestre do violão.

Ao referir-se a essa música, Vinicius contava: “Paulinho Nogueira, figura mais linda! Me lembro tão bem do dia em que Toquinho e eu fizemos esse chorinho, e de manhã cedo fomos à casa dele levar a música para ele ver. Olhe, poucas vezes na minha vida vi um homem tão feliz, parecia um menino. E exatamente a alegria dele se devia tanto ao fato de que ele foi professor de Toquinho, e já nesse choro eram três gerações tocan-do juntos: a minha, que sou autor da letra; a dele, que é autor da primeira parte do choro; e a de Toquinho, que fez a segunda parte do choro depois de muitos anos de Paulinho ter feito a primeira parte. De maneira que foi realmente a reunião de uma enorme felicidade, unindo três gerações”. Ao longo da parceria Toquinho/Vinicius, em se tratando de shows ao vivo por longas ou curtas temporadas, Punta del Este e Montevidéo, no Uruguai, e Mar del Plata e Buenos Aires, na Argentina, passaram a representar uma ex-tensão do território brasileiro. Juntos ou separados, eles se apresentaram na-quelas cidades em algumas centenas de espetáculos. Numa excursão iniciada em fevereiro de 1976, também estavam no grupo a cantora Amélia Colares e o pianista Tenório Jr.

vinicius e toquinhoEm março chegavam a Buenos Aires, e com uma semana de antecedência não havia mais ingressos para “El gran show de musica brasileña” no Gran Rex, um velho cinema transformado em sala de espetáculos. A Argentina vivia mais um momento político delicado. Tumultos e insubor-dinações exigiam o exército nas ruas numa busca constante a conhecidos terroristas e outros suspeitos. Dois dias antes do golpe militar, o pianista Tenó-rio Jr. saiu do hotel para comprar cigarros no bar da esquina, e sumiu como a fumaça de uma tragada. Jamais foi encontrado.

Todas as explicações para seu desaparecimento levam a imaginar que ele tenha sido confundido com alguém que precisava ser urgentemente “guardado”. Vinicius ainda permaneceu alguns dias na Argentina tentando esclarecer o caso e nada conseguiu. Em contraposição à perda do amigo, deu-se a descoberta de uma nova parceira de palco: Simone, que começava a se destacar no cenário musical brasileiro. Naquela época, qualquer cantora que estava começando gostaria de trabalhar com Toquinho e Vinicius. Tinha sido assim com Maria Creuza, Marília Medalha, Clara Nunes.

Todas que trabalharam com a gente estavam no começo da carreira. De uma certa forma, também Toquinho estava no co-meço da carreira. Vinicius era o catalisador. O que ele falava soava numa di-mensão especial, como um endosso de peso. “Eu fui sendo inserido nisso tu-do, até que nos tornamos uma unidade”, explica Toquinho. “Para mim passou a ser natural emprestar um pouco dessa aura especial para as pessoas. E com a Simone foi assim. Ela estava no comecinho da carreira, eu a vi cantar na TV e gostei daquela voz bonita e sua postura física. Eu a convidei para fazer uma temporada comigo. Ela topou e começamos a trabalhar num grande giro pela Argentina, Uruguai, Chile, e no México, no finzinho, Vinicius fez uma parte com a gente. Depois continuamos, eu e ela, percorrendo todo interior de São Paulo e o sul do Brasil.

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