Curiosidades

Na canção “Cotidiano nº 2, Vinicius desenvolveu uma idéia linda, fantástica e terrível do cotidiano. Nos dois primeiros versos, cita Neruda, seu grande amigo: “Hay dias que no se lo que me pasa/ Abro meu Neruda e apago o sol”. Logo após terem feito essa música, e estando em Paris, Vinicius resolveu mostrar a Pablo Neruda a homenagem que lhe havia prestado naqueles versos. Toquinho estava junto e presenciou.

– Fiz uma homenagem para você – dizia-lhe entusiasmado, Vinicius. Cantaram a música. Neruda ouviu, não entendeu. – Desculpa-me, Vinicius, mas onde está a homenagem? – Esse primeiro verso: “Hay dias que no sé lo que me pasa”. É um verso de um poema seu…

– Sem dúvida, é muito bonito – explicou Neruda. Mas jamais escrevi essas palavras. Isso é um trecho da letra de um tango argentino. De qualquer maneira, reconheço e agradeço a intenção da homenagem.

Nesse instante, Toquinho pôde perceber uma indisfarçável decepção na cara de tacho de Vinicius. Na casa de Vinicius, em Salvador, parece que tudo era feito em louvor à natureza. “Um dia, enquanto lidava com o violão, entretido com uma música, fui chamado por Vinicius”, conta Toquinho.

Ele me levou até a janela que dava para o quintal, onde criava um pavão, um peru, um cachorrinho e um gato, numa perfeita comunidade. ′Eu fico olhando pra esses bichos, e o comporta-mento deles me ensina′, dizia-me Vinicius. ′É a fase de maior aprendizado de minha vida. Eles convivem juntos, o peru com o pavão, o cachorro com o gato, e os quatro entre si. Eu aprendo e vivo cada vez mais como eles vivem: co-mendo quando tenho fome, acordando quando não tenho mais sono, e mais nada! Como eles fazem.

imagem1-(6)Nunca o ser humano me ensinou tanto como esses bichos′”. Algumas músicas nasceram nesse ambiente baiano. Uma delas é “Regra três”, sobre a qual Toquinho conta: “Um samba que foi feito sem pretensão nenhuma. Fiz a melodia e Vinicius colocou uma letra da qual não gostei mui-to. Aí, ele refez, um pouco chateado por eu não ter gostado da primeira versão. Eu namorava muito naquela época. Era um tempo tranqüilo, sem AIDS, e se podia namorar mais tranquilamente. E a letra de “Regra três” foi feita para uma pessoa como eu era na época, me dizendo: ‘Atenção, que um dia você vai se dar mal’. Contém esse espírito de alerta, trazendo embutida um pouco da contrariedade por eu ter rejeitado a primeira ideia dele”. Toquinho e Vinicius fizeram várias temporadas de shows em Mar del Plata, na Argentina. Numa delas, sumiu um violão de Toquinho.

Ele conta com aconteceu: “Nós usávamos um carro que era do Coco Perez, o dono da boate. Era um Chevrolet 51, preto, que eu dirigia. O Coco deixava o carro com a gen-te, e numa dessas voltas da boate, eu ia largar o Vinicius em casa e seguir pa-ra o Cassino com uma namorada. Vinicius desceu do carro com meu violão, e enquanto abria a porta da casa, encostou o violão num murinho do jardim. Eu saí para o Cassino. Quando voltei, todos já dormiam. No dia seguinte, ao acordar, procu-rei pela casa o violão para tocar, não encontrei. Fui então ao quarto do Vini-cius, que estava na banheira. Perguntei pelo violão, e ele: ′Que violão? Você não me deu violão nenhum!′. Meu violão dançou.

Nunca mais vi esse violão. Acabei a temporada com um outro, horrível, da Georgiana, filha do Vinicius”. A parceria Toquinho/Vinicius atingira um estágio que já provocava em Vinicius aquele ciúme indisfarçável que ele sentia por todo parceiro que se tor-nasse mais constante. E com Toquinho não seria diferente. Chico Buarque hávia terminado a letra de “Samba de Orly”. Chegou com um papel na mão: “Completei a letra daquele samba que você deixou comigo em Roma”. Toqui-nho olhou, animou-se com a letra, elogiou. E Vinicius do lado, olhar de esgue-lha, ruminando curiosidade e ciúme. Pegou o papel, leu e comentou; “A letra é boa, mas tem umas frases que podiam ser melhoradas”. Chico, gentil, propôs a ele: “Se você achar alguma coisa melhor, a gente muda”. Era tudo o que Vini-cius queria: entrar na parceira. Foi para um canto, mexeu, remexeu e voltou, sugerindo: “Tem uma frase aqui, Chico, que é muito branda por todo o tempo que você passou lá fora: ‘Peço perdão pela duração dessa temporada’ é muito leve. Tem de ser: ‘Peço perdão pela omissão um tanto forçada’. É mais con-tundente”. Chico e Toquinho concordaram com a mudança. Era um tempo em que tudo passava pela censura. Na hora de gravar o samba, a única frase censurada foi a que Vinicius sugerira. Toquinho ligou para ele: “Vinicius, tua frase não passou pela censura”. E ele: “A frase sai, mas eu continuo na parceria”.

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4 Respostas

  1. João Cesar Holtz

    Toquinho, ainda quero ir num show teu. Obrigado por nos agraciar com essas histórias maravilhosas e por tudo que vivenciou com Vinicius, quando vejo você falando dele, dá pra se notar que a relação era muito além de “voz e violão”. Abraços.

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