Primeiros Estudos

Foto_8Apesar de o pai proporcionar a Toquinho a influência de tantos gêneros musicais, foi a preocupação da mãe, Dona Diva, que o levou até o violão. As crises emocionais continuavam na época dos exames escolares. E a mãe, numa verdadeira imposição progressista, fez com que ele escolhesse uma atividade que o tirasse daqueles conflitos físicos e psicológicos.

E Toquinho escolheu: “Quero aprender a tocar violão”.

Durante a segunda metade da década de 1950, o violão deixara de pertencer apenas à malandragem boêmia e passara a representar até um símbolo cultural. Onde quer que a juventude Toquinhose reunisse, despontava um violão entoando melodias e aproximando pessoas. Aquele instrumento invadia a classe média, e o principal estimulante dessa invasão foi, sem dúvida, o grande João Gilberto, autêntico no ritmo de sua batida inovadora e no jeito de cantar. “Ele colocava o violão de uma maneira muito íntima e com um tipo de voz que a gente podia até se imaginar cantando”, explica Toquinho.

“Eu comecei a aprender logo depois que saiu o primeiro disco do João Gilberto. Toda minha geração toca violão porque João Gilberto tocava, essa é que é a verdade. Toda transformação causada pela Bossa Nova, em síntese, mora nas seis cordas de seu violão e na sua maneira genial de interpretar canções”.

Os primeiros dedilhados, Toquinho aprendeu com Dona Aurora, mulher de ar austero, alta, ruiva, de óculos, professora de piano que resolvera ensinar também violão. A cada aula, Toquinho exigia ensinamentos que ela desconhecia. Ele ouvia João Gilberto, Carlinhos Lyra, e queria que Dona Aurora lhe desse aquelas músicas, eram acordes dissonantes que ela não sabia. Antes de sumir, Dona Aurora deixou-lhe um recado, que não tinha capacidade de acompanhar os reflexos daquele a quem ela chamava de “verdadeira mosca branca”, nem de ensinar o que ele pedia. Que ele procurasse um mestre do instrumento.

O grande mestre: Paulinho Nogueira

Paulinho Nogueira enchia-se de orgulho ao recordar as características de Toquinho, desde o início, um aluno incomum: “Na primeira aula, passei para ele o acompanhamento da música “Esse seu olhar”, e ele tinha de cantar. Na aula seguinte, trouxe a música no tom que eu dei e em mais dois tons por conta dele. Então, percebi que ele era diferente dos outros alunos!”.

Toquinho justifica a dedução do mestre: “Eu sempre tive uma lógica muito grande para destrinchar o violão, uma lógica de raciocínio. Não é só o negócio da mão, é o raciocínio da equivalência. Perceber como passar de um ponto do braço do violão para os outros tons toda a função de um acorde. Um processo absolutamente físico. Em uma ou duas aulas, eu já achava qualquer acorde no violão. Por dedução prática, minha, visual e lógica. Ninguém tinha me falado que a 5ª de um acorde de Ré é um Lá natural. Eu conseguia visualizar o acorde e saber a localização dos intervalos. Sempre tive uma visão muito prática desse mecanismo do violão, das inversões do acorde. Até hoje, uma das coisas que faço melhor no violão é a digitação, que é a maneira de colocar os dedos e executar a mesma frase musical em pontos diferentes do braço do violão, até achar a mais sonora”, esclarece Toquinho. “Desde o início percebi com muita clareza que quanto melhor fosse a digitação, mais limpo seria meu som. Toda essa percepção vinha de uma dedução visual, racional. Daí o Paulinho se surpreender na segunda aula, porque não havia condições para tanto raciocínio nem para o conhecimento de tirar um solo junto com o acorde”.

paulinho-noquiraToquinho perguntava tudo, não deixava passar nenhuma dúvida. Exigia os fundamentos de uma posição de dedo, a função de uma nota, queria saber sempre mais. Sua curiosidade não se limitava ao violão. Perguntava sobre músicas, autores, épocas. Valsas, choros, interessava-se por tudo. Jamais faltava às aulas nem se atrasava, sempre com aquela ansiedade de aproveitar o máximo. Paulinho Nogueira comentava sobre isso: “Para mim também acabou virando um prazer dar aulas para ele, porque o entusiasmo que ele tinha eu passava a ter proporcionalmente como professor. Eu lhe passava alguma coisa e ele já deduzia aquilo e devolvia tudo aprendido. Para um professor, isso é maravilhoso! Como eu dava muita aula, os horários eram corridos, e havia sempre um aluno esperando. Então, às vezes coincidia de algum aluno muito antigo chegar ainda durante a aula do Toquinho. Espantavam-se com a habilidade dele, querendo saber há quantos anos ele tocava. E eram alguns meses apenas, diante daqueles que estudavam há mais de três ou quatro anos e não sabiam metade do que ele sabia. Ficavam desconfiados que eu o privilegiasse de alguma forma, ensinando melhor a ele do que aos outros. Aí, acabei tendo de escondê-lo, evitando que ele tocasse perto dos demais”, concluía Paulinho.

A grande amizade pelo professor e sua família e os pouco mais de três anos como aluno assinalavam em Toquinho um rótulo ao mesmo tempo privilegiável e perigoso: o estilo de Paulinho Nogueira. Mestre dedicado, aluno eficiente, grandes amigos, porém, personalidades antagônicas. A introversão de Paulinho, sua postura sóbria, linear e rígida perante a vida, refletiam uma contida intensidade instrumental, no purismo técnico do som conseguido pela ponta dos dedos. Diferia das características de Toquinho: humor expansivo, transparência de sentimentos, oscilante dinâmica existencial emitindo um som vibrante saído de cordas puxadas pela unha.

Ambos eram conscientes de suas diferenças, de suas atuações e de suas estradas. O aluno, buscando um estilo próprio. O professor, orgulhoso e interessado em ver o discípulo solto feito uma lança talentosa pelo espaço musical brasileiro.

“Eu fui fazendo com que ele percorresse outros caminhos e conhecesse outras pessoas” – afirmava Paulinho, com carinho de irmão mais velho. “Quando sabia de algum lugar ou alguma reunião onde haveria gente tocando violão, indicava para que ele fosse, pois ele tinha de conhecer outros violonistas. Mesmo assim, íamos juntos a muitas festas, e era natural a facilidade de Toquinho em se entrosar com as pessoas. Sempre tive por ele um carinho de irmão e um grande cuidado”.

Toda essa relação carinhosa de ensinamento e aprendizado seria traduzida doze anos depois, em 1975, com tanta justeza por Vinicius de Moraes na letra da música “Choro chorado pra Paulinho Nogueira”, que fez a primeira parte da melodia, cuja segunda parte é de Toquinho.

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