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30 junho 2015

História dos cem anos de Vinicius

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noticia2Em 1975, a Philips lançava o LP “Vinicius / Toquinho”, cuja capa mostra uma ilustração de Elifas Andreato: duas mãos se entrelaçando numa forte junção emocional de pele a transpirar rasuras de dor. Duas mãos que podem ser de uma mesma pessoa, ou de dois amigos ou de pai e filho estreitando amor e confiança a simbolizar um reencontro.
Elifas idealizou essa capa em função de sua própria realidade: infância tumultuada vivida em meio a uma relação desastrosa com o pai. Tão negativa que resultou-lhe uma decisão: jamais teria um filho. Enquanto elaborava a ilustração da capa, porém, ia ouvindo repetidamente uma das faixas do disco, cuja melodia envolve, e a letra devassa o coração de quem ouve: “O filho que eu quero ter”, de Toquinho e Vinicius.
O desenho de Elifas ia saindo de uma aflitiva solidão de amor. Fechava os olhos e via aquela criança se transformar num menino correndo a lhe beijar. Doía mais ainda em Elifas quando o lápis tocava o papel como uma barba a roçar-lhe o rosto. A barba do filho que virava homem e o embalava “num acalanto de adeus”.
Era tudo uma sublime continuidade! Aquela música mudara-lhe a cabeça: ele queria ter um filho! Correu pra Vinicius, contou-lhe essa história. O poeta olhou pra ele, e sem esboçar nenhuma surpresa, falou: “Você só compreenderá a vida na plenitude quando tiver filhos. E só entenderá seu pai e resolverá sua relação com ele no momento em que também for pai”. Elifas tornou-se pai de Bento e Laura: “Confirmaram-se as palavras de Vinicius. Baixei a resistência, abri minha guarda. Entendi meu pai, aproximei-me dele, e tudo melhorou”.

O ENCONTRO

Quando Vinicius convidou Toquinho para acompanhá-lo em vários shows na Argentina, em 1970, o encontro entre os dois deu-se a bordo do navio Eugênio C, rumo a Buenos Aires.
– Era um tempo em que Vinicius ainda evitava viajar de avião, então fomos para a Argentina de navio – conta Toquinho. – Eu sentia uma sensação estranha, não sabia direito o que é que eu ia fazer lá. De repente, estava a bordo de um navio junto com Vinicius de Moraes, um ser humano grandioso de quem até então eu conhecia quase nada, a não ser o que ele tinha escrito e cantado por aí. Sei que na primeira noite no navio eu passei muito mal, foi um horror. Pegamos uma tempestade no Golfo de Santa Catarina, e eu no meu quarto, enjoado, com tudo a balançar por todos os lados. Até marinheiro vomitava. E Vinicius sentado a uma escrivaninha, segurando o copo para que ele não caísse, e conversando naturalmente, sem se alterar. Ficou lá ao meu lado, como um pai, ou melhor, como alguém com pretensões de se fazer amigo. Nossa relação começou assim, e logo de cara eu passei a vê-lo um pouco como irmão, porque ele não sabia ser velho, o que na realidade ele não era.

O LP “LA VOGLIA, LA PAZZIA, L′INCOSCENZA, L′ALLEGRIA”

Um dos mais importantes trabalhos da parceria Toquinho/Vinicius é o LP “La voglia, la pazzia, l’íncoscenza, l’allegria”, um documento lírico definitivo, que gravaram com Ornella Vanoni, na Itália, em 1976: “…Questo disco é um momento talmente magico per me!”, escrevia ela na contracapa. Cantando em todas as faixas, ou sozinha com Toquinho e Vinicius, Ornella é parte integrante da magia desse disco, no mínimo magnífico. Um disco que foi sendo estruturado por mais de um ano entre telefonemas Brasil-Itália e vice-versa, escolha de músicos e repertório e acerto de centenas de detalhes.
– Passei um mês hospedado na casa de Ornella, uma casa linda na Via Appia, com jardins enormes – conta Toquinho. – Fiquei ensaiando lá com ela e o Bardotti para que tudo saísse perfeito nas gravações. Contávamos com a disponibilidade das pessoas, e isso contribuiu para a qualidade do trabalho. Tudo foi fei to com m uita tranqüilidade e tempo, o que, hoje, seria impossível.
O LP não só se tornou um dos mais importantes do ano como, até hoje, jamais saiu de catálogo, sendo ainda um grande sucesso em toda Itália e em muitos outros países. As versões de Bardotti, estudioso da língua portuguesa e falando fluentemente nossa língua, saíram com todo molho e picardia que Toquinho e Vinicius colocaram no momento da composição. Outro fator determinante para o sucesso do disco foi a presença de Ornella, grande responsável pelo prestígio e popularidade da música brasileira na Itália.

NA CASA DE VINICIUS, NA BAHIA

Em muitos períodos de sua parceria com Vinicius, Toquinho morou na casa do poeta, em Salvador, na Bahia. Parece que tudo naquela casa era feito em louvor à natureza. Toquinho fala sobre isso:
– Um dia, enquanto lidava com o violão, entretido com uma música, fui chamado por Vinicius: “Toco, vem ver uma coisa”. Ele me levou até a janela que dava para o quintal, onde ele criava um pavão, um peru, um cachorrinho e um gato, numa perfeita comunidade. “Eu fico olhando pra esses bichos, e o comportamento deles me ensina”, dizia-me Vinicius. “É a fase de maior aprendizado de minha vida. Eles convivem juntos, o peru com o pavão, o cachorro com o gato, e os quatro entre si. Eu aprendo e vivo cada vez mais como eles vivem: comendo quando tenho fome, acordando quando não tenho mais sono, e mais nada! Como eles fazem. Nunca o ser humano me ensinou tanto como esses bichos”.

COTIDIANO Nº 2

Na canção “Cotidiano nº 2”, Vinicius desenvolveu uma ideia linda, fantástica e terrível do cotidiano. Nos dois primeiros versos, cita Neruda, seu grande amigo: “Hay dias que no se lo que me pasa / Abro meu Neruda e apago o sol”. Logo após terem feito essa música, e estando em Paris, Vinicius resolveu mostrar a Pablo Neruda a homenagem que lhe havia prestado naqueles versos. Toquinho estava junto e presenciou.
– Fiz uma homenagem para você – dizia-lhe entusiasmado, Vinicius.
Cantaram a música. Neruda ouviu, não entendeu.
– Desculpa-me, Vinicius, mas onde está a homenagem?
– Esse primeiro verso: “Hay dias que no sé lo que me pasa”. É um verso de um poema seu…
– Sem dúvida, é muito bonito – explicou Neruda. Mas jamais escrevi essas palavras. Isso é um trecho da letra de um tango argentino. De qualquer maneira, reconheço e agradeço a intenção da homenagem.
Nesse instante, Toquinho pôde perceber uma indisfarçável decepção na cara de tacho de Vinicius.
Ouça a versão original: http://www.youtube.com/watch?v=uc67KkNF_7M

VINICIUS FALANDO DE TOQUINHO – Parte II

“Em 1970, um ano de trabalho ininterrupto, tive a oportunidade, em várias circunstâncias, de ver Toquinho lidar com músicos nacionais e estrangeiros, maestros e instrumentistas muitas vezes com bastante mais escola que ele, mas aos quais faltava aquele imponderável que Toquinho tem; e meu novo parceiro, com muito charme e habilidade os ia encaminhando sem que eles sentissem, para um acorde mais belo, uma harmonia mais original, um acabamento mais perfeito no sentido da música, levando-os mesmo a se atribuírem, encantados, a nova descoberta para a qual Toquinho, quase omisso, os orientara. E tem uma coisa: quando ele acha que está certo, não adianta o cara puxar diploma de Conservatório. Toquinho não dá pra trás, não há perigo. Nunca, a não ser no início de minha parceria com Baden, tive qualquer dos meus principais parceiros um tal arranco de criatividade como com Toquinho. Temos composto sem parar. Toquinho é um sarro. Quem foi que disse Sr. Vinicius de Moraes, que ‘São Paulo é o túmulo do samba?’. Peça desculpas, imediatamente, vamos! É verdade que Toquinho tem uma boa quilometragem carioca… Mas eu sei que é um paulista de coração que ainda fala ‘Bidu’! quando se entusiasma por uma coisa e tem a coragem de dizer que prefere São Paulo ao Rio, para morar…”.

VINICIUS FALANDO DE TOQUINHO

No início dos anos de 1970, Toquinho e Vinicius compunham desbragadamente. Numa de suas crônicas daquela época, Vinicius alardeava a descoberta do garoto violonista como parceiro: “Encontrei novamente um parceiro pra valer, e ele é um jovem paulista de 24 anos, de origem italiana, com uma pinta de menestrel medieval a quem se ajustariam muito bem um gibão de listras e um gorrinho vermelho de feltro encimado de uma pluma. Chama-se Antonio Pecci Filho, mas é conhecido pelo apelido de Toquinho – e simplesmente ‘janta’ o violão. Será, na minha opinião, o grande sucessor de Baden Powell, como Baden foi de Canhoto. A influência de Baden foi vital para Toquinho. Foi a partir dela que seu violão realmente soltou-se, e ele começou a amadurecer como instrumentista. E há em ambos a mesma ligação siamesa ao violão, como se este fosse um prolongamento de seus braços. O que mais me encanta em meu novo parceiro é sua harmonia como ser humano. Embora não goste que ninguém se meta demasiado com o que faz, ou lhe atravanque o caminho, Toquinho não perde nunca o senso de humor e o seu jeito de garotão maravilhado com a vida e o que ela lhe está prodigalizando. É o tipo do jovem menestrel moderno, gostando de criar e de sair por aí mostrando o que faz, com respeito por quem sabe mais, mas sem qualquer inveja ou ressentimento. E sua relação com quem sabe menos é sempre generosa e atenta”.

OS QUATRO MOSQUETEIROS

Durante um período da parceria, Toquinho e Vinicius faziam shows acompanhados por Azeitona no contrabaixo e Mutinho na bateria. E os quatro saíam pelas estradas percorrendo todos os tipos de cidades do interior paulista e de outros estados. Nessas andanças intermináveis, iam desbravando churrascarias e rodízios de estradas. E Vinicius não perdia a oportunidade para a comparação: “Somos os 4 mosqueteiros das churrascarias. Comendo cupins e bebendo cerveja nos rodízios, aguentando as moscas e o calor”. Para celebrar essa realidade, fizeram uma música que passaram a cantar nos mais diferentes locais, cuja letra é essa:

“Nós vamos pelas rotas do Brasil
Nós somos os quatro mosqueteiros musicais
Cantamos com empenho varonil
Pras velhinhas, coroas e mocinhas virginais.
Nós somos Athos, Porthos, Aramis e Dartagnan
Levamos uma vida bem feliz e folgazã
Os quatro mosqueteiros musicais:
Mutinho, Azeitona, Toquinho e Vinicius de Moraes”.

(do livro “Vinicius-Sem Ponto Final” – de João Carlos Pecci – Editora Saraiva)

TOQUINHO FALANDO DE VINICIUS

“Jamais enxerguei Vinicius como um pai de postura paternal e protetora. Mesmo porque ele não agia assim nem com os próprios filhos. A feição de pai surgia por sua grande sabedoria de vida, por saber mais do que a maioria das pessoas. Talvez o homem de maior sabedoria de vida que eu tenha conhecido. Ao mesmo tempo, quando se via diante de uma pessoa muito simples, chegava a se emocionar até os olhos se encherem de lágrimas. De repente, esse pretenso ar paterno que ele poderia ter em relação a mim ia por água abaixo quando ele se tornava essa criatura frágil, com toda a sabedoria de poeta. Vinicius carregava dentro dele o jovem disposto e disponível à vida; que arriscava nas coisas, despojado e solto. Na nossa relação, eu era o fio-terra, quem se preocupava aqui embaixo conduzindo as coisas. E ele, o cosmonauta, o voador, que partia mesmo! Mas, por mais controvertido que pareça, ele me ensinou a ser profissional, a respeitar horários, pessoas e valores. Isso reflete as contradições desse grande poeta, que se debatia entre livrar-se das amarras da vida e seguir as ordens dessa coisa ilógica que é a própria vida. Dizia que o cotidiano é a ferrugem da vida, e fazia tudo para ludibriar essa ferrugem do dia-a-dia. Mas ao mesmo tempo que odiava esse lado massacrante da vida, procurava harmonizar-se com isso tudo. Em cada gesto, em cada passo que dava, nos sentidos mais variados, buscava essa harmonia. Um homem que nunca soube viver sem poesia, e Vinicius viveu como poeta. Ser poeta é uma coisa. Mas viver como poeta é dilacerante, arrebenta o homem por dentro. Na rapidez do cotidiano quase sempre não cabe a poesia, e o Vinicius não conseguia viver longe dela. A poesia o acompanhava o tempo inteiro e ele se debatia com ela, sempre suscetível ao enfoque poético das pessoas e das coisas. Para ele, tudo era natural. Vinicius me passou todas essas variáveis humanas e, se aprendi, é porque já devia ter uma tendência para isso”.

do livro “Vinicius-Sem Ponto Final” – de João Carlos Pecci – Editora Saraiva)

“Como dizia o Poeta”

Em junho de 1970, com a participação de Maria Creuza, Toquinho acompanhou Vinicius em vários shows na Boate La Fusa, em Buenos Aires. Foi seu primeiro trabalho junto com o poeta. Sobre isso, ele comenta: “Houve uma adaptação perfeita entre a gente nos dez dias em Buenos Aires. Gostávamos das mesmas coisas: violão, música, noite, boas comidas. Voltei com aquela sensação gostosa de haver trabalhado com Vinicius. Mesmo assim, não pensava que fosse prosseguir. Não havia saído nenhuma música ainda”. Música que não demoraria. Um dia, já no Rio, em agosto de 1970, Vinicius indagou de sua mulher Gesse: “Que tal passarmos alguns dias em Salvador, não vou lá desde 1966…”. Baiana e vidrada em sua terra, além de vibrar e topar, no ato, Gesse acrescentou: “Aí, você aproveita e faz um show no Teatro Castro Alves. Deixa eu cuidar de tudo?”.
Toquinho vestira de samba um adágio de Albinoni e, em Buenos Aires, mostrara a Vinicius , que ouviu e gostou. E agora, no ônibus que o levava a Salvador, o poeta criava a letra para tal melodia: “Quem já passou por essa vida e não viveu/Pode ser mais, mas sabe menos do que eu…”. Começava aí uma das mais férteis e longas parcerias da música popular brasileira. “Como dizia o poeta” foi apresentada ao público nesse show do Teatro Castro Alves nos dias 6, 7 e 8 de setembro de 1970.

(do livro “Vinicius-Sem Ponto Final” – João Carlos Pecci – Editora Saraiva)

Em 1933, com a ajuda do pai Clodoaldo, Vinicius teve de pagar a edição de seu primeiro livro, “O Caminho Para a Distância”. “Eu tinha 19 anos quando, pela mão de Octávio de Faria, fui pedir a Augusto Frederico Schmidt para distribuir esse livro. Encontrei Schmidt à porta de sua livraria e seu volume físico oprimiu o menino magro que eu era. Olhou-me com intensidade e disse: ‘Mas é uma criança…’. Aquilo me deu raiva, porque eu me achava um gênio e meus amigos mais próximos também não faziam por menos”.
O livro passou despercebido pelo púbico e, após um desentendimento com o livreiro, Vinicius recolheu a edição, que alguns anos mais tarde foi usada para calafetar as portas da casa e do estúdio do poeta, devido a terríveis chuvas que caíram no Rio de Janeiro. Assim, “O Caminho Para a Distância” foi tragado pelas águas da chuva…

(Do livro “Vinicius-Sem Ponto Final”- João Carlos Pecci – Editora Saraiva)

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